Os trilhos do Mucuripe


 

Lembro de quando vivíamos na Varjota, e um dia acordei surpreso com o som
de uma buzina contínua no meio da madrugada. Esse som tinha tantas camadas
que, a princípio, eu não sabia muito bem identificar com clareza. Sabia que
não era de automóvel, porque o avançado da noite não permitia um som tão
forte e prolongado cortando nossos silêncios. Percebi naquele fenômeno
sonoro uma distante ponta aguda que reverberava partindo para o grave;
podia ser bem aquele negócio de efeito Doppler que a gente estuda na escola,
mas nem sempre entende direito no cotidiano. 

Curioso, passei pelo corredor do apartamento, com intenção de ouvir melhor
antes de ir para a cozinha beber um copo d’água. Parei na porta do último
quarto para falar baixinho com minha mãe: - Que som é esse? É o som de
um trem, meu filho, respondeu sonolenta, e ele vai pela Via Expressa rumo
ao Porto do Mucuripe.

Ela pouco tempo depois de me dizer aquilo deve ter adormecido, mas o impacto
daquela resposta me deixou aceso, fascinado. Tudo fez total sentido, quando
liguei o ruído metálico dos trilhos à etérea buzina. Olhei pela janela e vi um
conjunto interminável de vagões pesados, seguindo com pressa para o ponto
final onde as velas dos jangadeiros saem para começar a pescaria noturna.
Fiquei na dúvida por um instante se morar perto da zona de passagem do trem
era incômodo, um distúrbio de poluição sonora, ou se era mesmo um privilégio
estético, do acesso auditivo a um som que nem sabemos se a próxima geração
irá (re)conhecer.

Minha família fixou residência em Fortaleza no final do ano de 2006. Migramos
de Brasília, capital que viu crescer a mim, a meu irmão e nascer o nosso caçula.
O metrô só chegou no começo dos anos 2000. Por ser debaixo da terra e no meio
do Plano Piloto, lá a gente não ouvia tão próximo como no quarteirão de casa.
A descoberta do som desse trem cargueiro de superfície me levou a um passado
distante, a um estímulo que antes meus ouvidos não haviam experimentado.
Despertou em mim informações de uma memória ancestral, referência simbólica
presente na linhagem familiar materna.


Outro dia li em um trecho do livro Bagagem,
da poetisa Adélia Prado, o seguinte: "Um
trem-de-ferro é uma coisa mecânica, / mas
atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida, / virou só sentimento.”
Coincidência ou não, o que diz a escritora mineira
de Divinópolis atinge a gente de forma profunda,
porque a cidade dela fica a apenas duas horas
de distância da terra natal da minha mãe, Piumhi
(pium-hi, “mosca d’água” em tupi guarani, mas que se lê Piuí, justamente a
onomatopeia do barulho da buzina do trem). 


Se fosse locomotiva, o rio São Francisco começaria o percurso ali naquela região,
na estação da Serra da Canastra. Desceria da nascente pela gelada Casca Danta,
a primeira cachoeira, e seguiria viagem dos mananciais das alterosas de Minas
Gerais até o Atlântico, passando por boa parte do Nordeste brasileiro. Daqui a
algum tempo, transposto com a expansão dos trilhos aquáticos, o Velho Chico vai
encontrar finalmente as águas sertanejas do Ceará, para onde viemos como
tantos mineiros, buscando o mar, a brisa e a qualidade de vida do litoral.

A partir daquela madrugada, ouvir o trem se tornou para nós como um vínculo
sonoro da nossa condição de andarilhos. O som trazia a lembrança de quem parte
de um lugar longínquo com sonhos e um sentido de pertencimento, de raízes, um
traço típico do imaginário daqueles que vêm de Minas. Uma tia minha, que é o
museu vivo das histórias do clã dos Leonel, conta que meu bisavô foi tropeiro
levando mercadorias nas tropas de mulas por léguas a perder de vista. Era de
um espírito viajante que passou para as gerações seguintes, para o meu avô
fazendeiro, que tentou a sorte nos garimpos do interior do Pará. Os assobios desse
trem, com o tempo, tornaram-se familiares, talvez comuns como o zumbido da
geladeira, porém um elemento muito mais afetivo e poético da paisagem sonora. 


Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador

originalmente publicado em:

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