Chegadinho: Doce Paisagem Sonora

 Trechos do texto de Thaís Amorim Aragão escritos para o 5º Encontro de Música e Mídia em 2009.

 
          De volta à cidade de Fortaleza depois da mais longa ausência à qual estive submetida até então, voltei a escutar, talvez com mais atenção do que anteriormente, um som que desde criança lembro vir das ruas onde moramos. Do lado de fora da atual residência de nossa família, emergindo da massa difusa formada por incontáveis sons, unida como trilha sonora das tramas se desenrolando neste cenário urbano, comecei a
distinguir um tilintar contínuo que soava extremamente familiar. Era o vendedor de chegadinho que se aproximava.
          Chegadinho é um doce que se assemelha à casquinha dos sorvetes, sendo que possui a forma de uma pétala e é tão fina que se desmancha na boca. Suas porções são vendidas por ambulantes que os levam em tambores cilíndricos, presos às costas por uma correia apoiada em um dos ombros. Percorrendo bairros residenciais, eles precisam chamar a atenção dos potenciais fregueses e fazem isso tocando um triângulo, instrumento de percussão em metal muito usado na formação de grupos de música popular da região Nordeste do Brasil, marcando ritmos como o baião e o xote.



            Durante quinze dias, realizei o registro em vídeo da passagem do vendedor de chegadinho ao longo de um quarteirão, quando ele cruza a movimentada avenida Barão de Studart, deixando o bairro da Piedade e chegando ao Dionísio Torres. Em um dos trechos do vídeo, o som do triângulo parece marcar o passo de um grupo de trabalhadores que leva volumes até um caminhão. Nada tinham a ver com o vendedor. Apenas se encontravam ali no momento em que o vendedor-tocador passou, deixando-se conduzir pelo mesmo ritmo. 
            Este episódio é um bom exemplo de como a música pode se aliar ao trabalho e demonstra um antigo hábito do homem, quando “os ritmos das tarefas eram sincronizados com o ciclo da respiração humana ou surgiam dos hábitos relacionados com as mãos e os pés” (SCHAFER, 2001:99). Este hábito foi sendo deixado de lado, à medida em que o ritmo da máquina e o ritmo do homem entraram em descompasso.
               Antes de influenciar o caminhar das pessoas à sua volta, é o passo do próprio vendedor que se reflete no andamento do instrumento. Características físicas, como altura e força muscular, influenciam o toque do triângulo, assim como a experiência estética de cada vendedor vai derivar uma ampla variedade de células rítmicas, tanto se compararmos o toque de diferentes vendedores quanto se avaliarmos a performance de um só homem ao longo de sua trajetória. Além da aptidão para o instrumento, do repertório musical e da constituição física, também o humor do vendedor-tocador é perceptível a partir do toque do triângulo: mais solto e intenso em alguns dias, mais linear e opaco em outros.
               Na música, há séculos a emoção e o passo humanos são base para padrões de andamento. O grau de velocidade do compasso é tradicionalmente determinado em termos em italiano, como Andante. Este andamento remete à velocidade do andar “amável” e “elegante”. Por sua vez, o Allegro é “ligeiro” e “alegre”, enquanto o Vivace é “rápido” e “vivo”.
               Há dias em que o vendedor de chegadinho está em tal estado de espírito que se permite tocar não apenas o seu triângulo, mas outros elementos que encontra em seu caminho. Foi um tilintar de altura e timbre diferentes que me fez deixar o nível de atenção da “escuta em espera” (listening-in-readiness) para finalmente entrar na escuta ativa (listening-in-search).
              Primeiro, tomei consciência de um toque individual na passagem daquele vendedor, um toque único e específico que se diferenciava da base rítmica constantemente a se repetir. Mas não consegui identificar ao certo como ele produzia este som diferenciado, reproduzido alguns dias e outros não, mas que certamente surgia sempre no mesmo ponto do trajeto.
              Na impossibilidade de distinguir como este som era gerado, tratei de me dirigir à janela cada vez que os primeiros ecos do triângulo surgiam na paisagem sonora, a fim de focar minha atenção – escuta e, neste caso, também visão – exclusivamente no vendedor de chegadinho.



             Descobri que aquele vendedor de chegadinho tem a habitual predileção de bater a haste do seu triângulo contra o poste de ferro de uma placa de trânsito, erguida na calçada apenas alguns metros antes da esquina onde ele sempre dobra, deixando a rua. Este comportamento produz um som de timbres ainda metálicos, mas que liberta outras freqüências, outros harmônicos, outras peculiaridades.
             Isto não ficou claro logo na primeira vez em que me pus à janela, porque nem todo dia este vendedor de chegadinho brinca com o poste. Há dias em que a presença de um transeunte o leva a passar pelo lado direito da placa, o que faz com que sua mão esquerda, que segura o triângulo, fique mais próxima do poste do que a mão direita, que segura a baqueta de ferro. Numa situação como essa, se desejasse bater no poste, chamaria um pouco mais de atenção. Deslocaria seu centro de equilíbrio, desaceleraria ou perderia seu passo, desviaria sua rota, ainda que em centímetros. Mas não parece ser este seu principal objetivo.
             Em outros dias, mesmo sozinho em toda a extensão do quarteirão, o vendedor de chegadinho não bate no poste. Há dois motivos aparentes. O primeiro deles é que se encontra alheio e distraído, ou compenetrado, absorvido em outros pensamentos. Parece nem mesmo se dar conta da presença da placa em seu caminho.
          O segundo motivo é mais musical, tem a ver com ritmo. O vendedor fita o poste à certa distância. Enquanto se aproxima, avaliaria qual é o momento ideal de bater na base da placa e trazer para dentro da sua performance cadenciada o elemento, digamos, “surpresa”, que ele capta diretamente do ambiente. Nem sempre o momento em que atinge a posição ideal para desferir este toque externo ao instrumento é o momento em que esta batida, enquanto figura musical, se encaixaria harmonicamente na célula rítmica que o vendedortocador vem executando.
            Eventualmente, quando concluísse isso, ele finalmente “ignoraria” a placa, às vezes olhando furtivamente para o outro lado no instante em que cruza o poste, como se, fixando sua atenção em outro ponto, fosse mais fácil aplacar a tentação de fazer ressoar esse toque – que pode ser compreendido como uma pontuação de clímax nesta partitura imaginária que é metáfora para a sua jornada de trabalho.
            Quando vende chegadinho, este homem não só trabalha. Ele também musica a paisagem sonora. Bater no poste é um ponto de contato com o ambiente que ele percorre; o acaso é um elemento que o estimula, que dá cor à sua rotina. Musicalmente, ele deixa, por onde passa, a marca de que percebe sensivelmente seu entorno e que também pode controlá-lo em determinados níveis e fazer uso dele, inclusive de forma sofisticada, com funções estéticas. Este vendedor de chegadinho persiste como sujeito e faz da paisagem sonora um meio para assim se afirmar.


link para o texto completo:

assista a produção e venda de chegadinha:
http://www.youtube.com/watch?v=NOGFY_AJUlM


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